retirado do blog de nosso líder rogerio skylab (godardcity.blogspot.com.br):
O programa MATADOR DE PASSARINHO, que venho apresentando toda segunda-feira, à meia-noite, no Canal Brasil, foi programado para ter vinte e seis entrevistas. Até o momento foram ao ar oito entrevistas, mas já gravamos vinte e três. Na reta final de concluirmos as gravações, fui à campo na tentativa de fecharmos uma das últimas entrevistas e, provavelmente, a mais difícil: Damião Experiença.
Foi assim que desembarquei na estação terminal do metrô: Praça General Osório. É ali que o nosso personagem procurado habita.
O seu endereço é desconhecido. Sabemos que reside na comunidade do Cantagalo, mas não sabemos exatamente onde. O produtor do programa, Heitor Zanatta, em contato com pessoas que já tiveram acesso à Damião, deu-me as piores notícias. Mesmo assim, fui a seu encalço com uma leve e vã esperança.
Rondei as imediações e fui até o elevador que dá acesso à comunidade. Desisti de subir e voltei na direção da praça. Chegando à avenida principal, ou ia na direção de Copacabana, ou ia na direção do Leblon. Decidi então pela segunda opção e, quando me pus a atravessar a rua, dei de cara com ele.
O próprio. Era Damião. Menos espalhafatoso, camisa abotoada até o pescoço, chinelo de dedo. Parece inverossímil, tamanha a coincidência. Mas era ele mesmo, setenta e sete anos, o baiano arretado que gosta de mulher lésbica.
E a gente ali em meio a avenida. Me pagou um café no bar da esquina. À certa altura, um mendigo bêbado se aproximou, o conhecia. Pediu-lhe cinquenta centavos. Fiz questão de dar para que se afastasse e pudéssemos continuar a conversa. Depois, Damião me informou que o mendigo era um turco rico que se perdeu nas drogas.
Conversamos muito. Muita gente das imediações conhece Damião. Me informou que estava quase cego : um dia amanheceu assim ; mas queria distância de médico.
Não me reconheceu. Porém, depois de dizer-lhe meu nome, soltou essa : você continua no Banco do Brasil ?
A conversa se desenvolveu em meio a delírios e lucidez. Disse-me que sua mãe era judia e seu pai, russo. Depois me falou que viajou recentemente para a Colômbia.
Falei-lhe do meu programa e que tencionava entrevistá-lo. Pediu-me que desistisse, que até o Jô Soares tentou levá-lo e não conseguiu.
Eu o fiz ver que ele era a minha principal referência. Lembrei-lhe do disco que fiz em sua homenagem, o SKYLAB III. Cheguei a dizer-lhe que era um gênio, mas ele fez pouco das minhas palavras.
À certa altura, perguntei-lhe se era boato o que cheguei a escutar várias vezes: atribuíam-se aos Novos Baianos o arranjo e a execução de alguns de seus discos. Ele prontamente negou, chegando inclusive a informar que os Novos Baianos nem o conheciam. Depois, me garantiu que ele próprio tocou todos os instrumentos.
Falamos de muita gente, desde André Midani, que, segundo Damião, chegou a convidá-lo várias vezes a assinar contrato, até Caetano Veloso que, para ele, é música de viado.
Quando perguntei se tinha muitas mulheres, me falou que atualmente estava broxa.
Em seguida, me perguntou se eu era casado. Eu quis negar. Percebi que sua pergunta era uma afirmação, assim como também percebi a distância imensa que nos separava. Eram seus momentos de extrema lucidez : nada lhe escapava.
Não sei se por vergonha, por piedade, ou mesmo por algum estranho senso de realidade, respondi que era fodido. Ele não compreendeu. Eu repeti : eu sou fodido. E ele replicou : eu sou mendigo.
Num dado momento, um rapazinho me reconheceu e quis tirar uma foto. Mas nesse instante, Damião desapareceu.
Cheguei a avistá-lo em seguida, um pouco à frente, num ponto de ônibus (gosta de andar de ônibus pra desanuviar a cabeça). Alcancei-o e o agradeci por tudo.
– obrigado por que ?
Foram suas últimas palavras.