Há 30 anos era lançado “Selvagem?”, o terceiro álbum de estúdio da banda brasiliense Paralamas do Sucesso. Foi ali que Herbert Vianna, Bi Ribeiro e Barone deram seu passo definitivo rumo à maturidade sonora e ao sucesso. Após dois discos feitos na pressão mercadológica do rock nacional, o terceiro trabalho poderia ter sido uma simples repetição dos anteriores. O rumo, porém, foi outro. E seu resultado ainda é assustadoramente atual.
Foi ali que os Paralamas se afastaram da matriz new wave que influenciava a maioria das bandas locais e assumiram a música jamaicana como referência. Ao mesmo tempo, se aproximaram da MPB ao criar uma parceria com Gilberto Gil — outro que, na mesma época, trazia a música jamaicana para seu repertório em discos como “Raça humana” (1984) e “Dia dorim Noite neon” (1985).
Ao ouvir recentemente a canção “O Homem”, fui arremessado naquelas fendas mentais que só a música certa na hora certa pode fazer. Os versos de um jovem Herbert Vianna cantam palavras certeiras para um ouvido de 2016: “O homem tolo se põe a lutar por um lado até perceber que golpeia e sente a dor. Ele é o alvo da própria violência”. Ainda na mesma canção, outro recado sobre o tempo: “às vezes o benfeitor é quem maltrata”. Por fim, um último verso que já apontava a virada que viria três anos depois com a queda do Muro de Berlim e o (des)arranjo da globalização como premissa incontestável do mundo: “nenhuma doutrina mais me satisfaz”.
Trinta anos depois, o disco ganha um peso ainda maior e vai muito além desta canção. Da primeira até a última faixa o que fica marcado é a mudança decisiva de pauta que a banda propunha ao chamado “BRock” (saravá Arthur Dapieve!): saíam os amores e desventuras emocionais da maturidade, entravam canções que olhavam — nas letras e nos ritmos — para o terceiro mundo, para o problema da miséria urbana, para a violência e para a musicalidade da diáspora africana pelas Américas. “Alagados”, escolhida como o petardo de abertura, foi uma das primeiras vezes que uma geração falava de favelas não como espaço lúdico e resignado de uma pobreza “de raiz”, mas sim como espaço potente e de todos. Os “filhos da mesma agonia” estavam na Bahia (Alagados), na Jamaica (Trenchtown) e no Rio de Janeiro (Favela da Maré). A imagem de uma cidade-cartão-postal com os punhos fechados e a evocação de uma “Arte de viver” já fazia com que tudo ali desse outro rumo nas coisas.
E o disco segue falando de um mundo pleno de impasses. “Teerã” comenta a visão distante de um brasileiro sobre a terrível guerra entre o Irã e o Iraque. Um conflito que era estampado nas capas das revistas semanais e nos jornais. A pergunta que cortava o peito na época — “e o futuro o que trará para as crianças de Teerã?” — é a mesma que fazemos sobre as crianças sírias ao testemunharmos suas fugas da guerra em travessias mortais rumo a outros destinos incertos. Herbert escreve frases que poderiam ser ditas atualmente e que continuam doendo em meio aos contínuos naufrágios de refugiados e às polêmicas europeias cada vez mais profundas e perigosas.
Uma música, porém, é incomodamente atual. Ela é sempre lembrada por quem passa por humilhações ou violências com a Polícia Militar brasileira. Atualmente, basta você participar de alguma aglomeração ou protesto político para isso ocorrer. Ou, como sempre, basta você ser pobre, preto e morador de favelas para que isso ocorra o tempo todo — e com alto grau de letalidade. A música, claro, é “Selvagem”, aquela que abre nos dizendo o papo reto: “A polícia apresenta suas armas: escudos transparentes, cassetetes, capacetes reluzentes e a determinação de manter tudo em seu lugar”. Os versos são quase uma legenda para as imagens vistas nos últimos protestos em São Paulo e outras cidades brasileiras — em que policiais atiram balas de borracha e bombas em manifestantes, espancam pessoas desarmadas e privam cidadãos do seu direito de manifestação.
Herbert e a banda não apresentam apenas as armas de quem bate. Eles também dão traços aos que mandam bater, ao cenário da violência e aos que apanham: o governo, com seu “discurso reticente, novidade inconsistente” (e hoje em dia são inconsistências municipais, estaduais e federais), a cidade com o seu “grande monstro a se criar”, e os negros, com “as costas marcadas, as mãos calejadas e a esperteza que só tem quem tá cansado de apanhar”. Esse retrato (que conversa com “Estado violência”, outra música de 1986 composta pelos Titãs e parte do também fundamental “Cabeça Dinossauro”) permanece entre nós, com variações não nos que batem e mandam bater, mas nos que apanham. Cada vez mais a população ocupa as ruas. E, cada vez mais, todos apanham (de professores a estudantes, de jovens e velhos, dos mascarados à imprensa). Trinta anos depois, “o milagre risonho da sereia” cantando por Herbert, Bi e Barone continua insistindo em se tornar “um pesadelo tão medonho”.